terça-feira, 29 de março de 2011

(Rei?) Arthur, o grande herói da Bretanha

No mundo real, o dono da lendária Excalibur talvez não fosse rei nem se reunisse com seus cavaleiros em torno da távola redonda, mas organizou uma resistência sem precedentes contra os bárbaros que ameaçavam sua terra e seu povo.

Para a maioria dos europeus, o fim do mundo talvez nunca tenha estado tão próximo quanto lá pelo fim do século V. A única ordem que a região havia conhecido por quase 500 anos – o poder de Roma – tinha virado pó depois de uma longa agonia e o futuro parecia pertencer aos bandos de bárbaros do norte e do leste, fundando reinos que brotavam e sumiam como cogumelos nas terras do antigo império. Mas havia um lugar em que a vida não estava sendo nada fácil para os invasores. Na ilha da Bretanha, os ex-súditos de Roma montaram a resistência mais bem-sucedida da Europa e detiveram a maré bárbara por décadas. Cada vez mais parece provável que um líder militar poderoso conduziu os bretões, um guerreiro que iria virar lenda: ARTHUR.

A figura que está emergindo das brumas do ano 500 muito provavelmente não era um soberano e com certeza jamais botou os pés num castelo. Mesmo assim, existem paralelos intrigantes entre o Arthur lendário e o do mundo real, que podem incluir detalhes como o local de nascimento, a morte nas mãos de um conterrâneo bretão e, segundo uma das teorias mais polêmicas, até batalhas travadas do outro lado do canal da Mancha, em pleno território da atual França.

Muito antes da carreira militar de Arthur, a Bretanha romana (que correspondia mais ou menos à Inglaterra, ao País de Gales e ao sul da Escócia de hoje) já andava em maus lençóis havia um bom tempo. Em parte, isso era culpa dos próprios soldados que deviam comandar a defesa da ilha: volta e meia a Bretanha exportava um general que almejava tonar-se imperador, como o famoso Magnus Maximus, que chegou perto de conseguir seu intento antes de ser derrotado no ano 388. Esses sujeitos arrastavam consigo os exércitos responsáveis por patrulhar a província, deixando-a cada vez mais vulnerável aos ataques dos bárbaros.

Esse problema era endêmico em todo o império na época, mas, no caso da Bretanha, o incômodo era triplo. Do norte da Alemanha e do sul da Dinamarca vinham tribos germânicas, os anglos, saxões e jutos, falantes de dialetos ancestrais do inglês de hoje. Do nordeste da Escócia atacavam os escotos e os pictos, guerreiros violentos que lutavam de um jeito selvagem, seminus, com o corpo coberto por tatuagens. Para completar a desgraça, havia os escotos da Irlanda, que também eram um povo celta como seus primos bretões e gauleses, mas tinham ficado de fora do domínio romano.


Rei Arthur e Sir Lancelot, por William Morris


Muita gente costuma imaginar que, em dado momento, Roma acabou desistindo de manter a ilha dentro de seus domínios, já que tinha de se preocupar com a própria sobrevivência, e abandonou a Bretanha. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário: os bretões se cansaram de ser deixados na mão por mais um general que queria virar imperador, nesse caso, Constantino III, e declararam independência. A idéia de que a ilha ficou indefesa porque os romanos retiraram suas legiões não passa de um mito. As legiões foram embora porque Constantino as levou com ele para tentar conquistar o continente, sem sucesso, e a mudança seguinte no status da Bretanha foi ativa, e não passiva. O imperador legítimo, Honório, reconheceu a independência da região em 410, numa carta em que delegou às cidades bretãs a responsabilidade de se defenderem militarmente.


Uma faca de dois gumes 


Parecia ousadia demais dos bretões. E era mesmo. A estratégia de defesa que a Bretanha independente passou a adotar seguia os padrões dos romanos em seus anos finais de dominação: contratar mercenários bárbaros, normalmente germânicos, para fazer o trabalho sujo. Muitos deles eram saxões, parentes dos invasores, como mostra a presença de fivelas de cintos militares típicos desse povo em sítios arqueológicos da época.

Sujeitos ambiciosos e com alguma tradição de liderança aproveitaram o momento para ganhar poder. Os aristocratas nativos tinham se romanizado, mas, quando a ligação com Roma foi cortada, as antigas tradições de nobreza retornam com força. Os bretões eram muito conservadores nesse sentido.Um desses homens, chamado Vortigern, parece ter conseguido se tornar superbus tyrannus (“governante supremo”, em latim) de boa parte da Bretanha por volta do ano 430.


Tapeçaria com Artur como uma das nove pessoas respeitáveis, 1385.

 
Mas algo deu muito errado. Talvez os mercenários saxões não tenham sido pagos, ou talvez apenas tenham percebido que seria fácil tomar mais do que os bretões lhes haviam prometido. O fato é que o tiro saiu pela culatra, e os saxões se apossaram de terras por todo o leste da atual Inglaterra. Mais e mais levas deles vinham se juntar aos que já estavam na Bretanha, e os ataques de pictos e escotos voltaram com força total. Os bretões chegaram a pedir a ajuda de Roma, numa carta desesperada ao general Aetius: “A Aetius, três vezes cônsul, os lamentos dos bretões. Os bárbaros nos empurram para o mar; o mar nos empurra de volta para os bárbaros. Entre esses dois tipos de morte, somos ou afogados ou assassinados”, dizia a mensagem, datada de 446. Às voltas com os hunos de Átila batendo nos portões de Roma, Aetius não tinha como ajudar.

Rei Artur, Igreja da Corte, Innsbruck
É uma tarefa ingrata reconstruir o que aconteceu nas décadas seguintes. Além dos restos arqueológicos (que dizem pouco sobre pessoas ou batalhas específicas), tudo o que temos são anais compilados por monges na Bretanha e na Gália, às vezes séculos depois dos eventos narrados, e o apocalíptico De Excidio et Conquestu Britanniae (Da Destruição e Conquista da Bretanha), do também religioso Gildas. Esse livro tem, pelo menos, a vantagem de ter sido escrito mais ou menos perto dos eventos narrados, lá pelo ano 530. A principal preocupação de Gildas era moralizante (o monge diz que os bretões andavam levando a pior por causa de seus pecados), mas, no meio de tanto sermão, há também informações preciosas.

Segundo o monge, os bretões finalmente conseguiram iniciar uma resistência, sob o comando de um certo Ambrosius Aurelianus. Gildas o descreve como um homem decente, e afirma que seus pais usavam a púrpura, o que é uma indicação de que eles eram de uma família romana de origem nobre. A partir daí, a briga ficou indefinida, com vitórias de um lado e de outro, até que os bretões conseguiram um grande triunfo, num lugar chamado monte Badon (Gildas não deixou claro se foi Ambrosius quem conduziu os bretões nessa vitória). Dali por diante, os bretões teriam conseguido uma trégua de quase meio século. Textos compilados séculos mais tarde, provavelmente com base em antigos anais do século V, não deixam dúvidas sobre quem teria sido o vencedor de Badon: seu nome era Arthur.

Num dos raros momentos em que dá para comparar dados históricos com os da arqueologia, parece que ao menos o esquema básico dessa narrativa está correto: pesquisadores como John Hines, da Universidade de Cardiff, no País de Gales, verificaram que os cemitérios saxões (caracterizados pelas jóias e armas típicas dos mortos) avançam progressivamente para o oeste, sinalizando a expansão dos invasores, até pararem de repente por volta do ano 500. O avanço só recomeça meio século depois. Alguém ou algo deteve os saxões – resta saber se o fenômeno atende mesmo pelo nome de Arthur.
Curiosamente, outras pistas quase contemporâneas sobre o líder bretão são exatamente isso: nomes. 

Praticamente não há menção a pessoas chamadas “Arthur” na Bretanha antes de Badon, mas o nome, de repente, se torna um dos favoritos da nobreza nos dois séculos seguintes. Há uma série de breves referências a reis e príncipes galeses e irlandeses chamados Arthur a partir do fim do século VI. Nenhum desses homens deve ser o Arthur histórico, mas o que eles mostram é que o nome se tornou popular entre as famílias reais, e que pode ter havido um Arthur famoso que inspirou o batismo deles. O poema épico “Y Gododdin”, provavelmente do século VI, cita Arthur como modelo de bravura em combate. Dali por diante, o guerreiro começa a ser chamado de rei e vira presença constante nas lendas galesas, até ser transformado na figura cavalheiresca e mágica que conhecemos, com Merlin, Guinevere e tudo o mais, pelo clérigo Geoffrey de Monmouth, num livro de 1136.


Rainha Guinevere, por William Morris


Lendas, mitos e tradições

É nesse ponto que comparar a lenda com a história começa a se tornar um exercício útil. Diz a tradição, por exemplo, que Arthur teria nascido no castelo de Tintagel, na Cornualha (região sudoeste da Inglaterra). Acontece que escavações e análises feitas no final dos anos 90 nessa região mostraram que, de fato, Tintagel foi o lar de um nobre poderoso no fim do século V. Havia ali um movimentado porto, que comerciava com a Gália (atual França), a Itália e o norte da África. Quem quer que habitasse o lugar podia pagar pelo luxo de beber vinho e usar azeite do Mediterrâneo, carregados em vasilhas de fina cerâmica. Mas a descoberta mais impressionante no local foi uma laje de pedra com uma espécie de assinatura de quem mandou construir o lugar: Artognou (pronuncia-se “Arthnou”). No mínimo, é uma coincidência das grandes.

A 100 quilômetros de Tintagel, escavações que se sucedem desde os anos 60 têm mostrado que a região de Cadbury, identificada como a lendária Camelot há séculos, realmente abrigou a maior praça forte da Bretanha nos séculos V e VI. Um colosso com muralhas de madeira e pedra que iam subindo, em círculos, as encostas de uma colina até terminar num portão, cercado por torres.


Tudo indica, então, que as áreas por onde Arthur andava ainda eram prósperas e bem guarnecidas militarmente. Mas será que ele as governava? Arthur deve ter sido um nobre bretão, mas as referências mais antigas às batalhas vencidas por ele, no manuscrito do século VI conhecido como Historia Brittonum (“História dos Bretões”), de autoria desconhecida, o chamam de dux bellorum, “líder de batalhas”, e dizem que ele lutava ao lado dos reis bretões. Esse texto também mostra que a imagem de Arthur como um herói cristão é muito antiga: numa de suas vitórias, ele teria carregado uma imagem de Nossa Senhora. Em Badon, teria empunhado “a cruz de Nosso Senhor Jesus” (provavelmente uma referência a um amuleto muito comum na época: um pedaço de madeira supostamente retirado da cruz em que Cristo morreu). Ser um líder guerreiro, na época, significava trabalhar muito. Lutava-se um tipo de guerra altamente móvel e sobre qualquer terreno. A maioria de suas tropas provavelmente era montada e lutava com espadas, lanças e dardos, aproximando-se do inimigo numa série de investidas, e não numa carga de cavalaria coordenada, por isso, a famosa cavalaria de Arthur é vista como algo fantasioso pelos historiadores.


O último sono de Arthur, por Sir Edward Burne-Jones

 
Até a idéia de que Arthur teria levado um exército para a Gália, por séculos considerada uma invenção de Geoffrey de Monmouth, tem sido reconsiderada. Para especialistas, registros sobre um chefe bretão chamado Riothamus, que levou 12 mil homens para ajudar os romanos contra os visigodos, poderiam, na verdade, se referir a Arthur. É que Riothamus aparenta ser não um nome, mas um título, significando “rei supremo”. No entanto, como a aventura de Riothamus data de 470 e ele desaparece logo depois, fica difícil reconciliá-lo com a vitória de Arthur em Badon (por volta do ano 490).

O fim de Arthur registrado por antigos textos galeses oferece mais uma conexão intrigante entre história e lenda. No mito, o rei teria sido traído por seu sobrinho, Mordred, conseguiu matá-lo em combate, mas recebeu um ferimento letal. Os anais registram “a contenda de Camlann, em que Arthur e Medraut [Mordred?] pereceram”. Nos dois séculos seguintes, os bretões seriam cada vez mais empurrados para o oeste, embora sempre lutassem para preservar sua identidade, ainda viva no País de Gales de hoje.

No fundo, os detalhes passíveis de recuperação são poucos para uma vida que inspirou tantas lendas. É difícil imaginar que em algum dia teremos mais informações seguras sobre o Arthur histórico além das que já conhecemos e, para falar a verdade, isso não parece um problema. Há uma mágica em torno do personagem que é parte de seu fascínio. Considerando os ideais de cavalheirismo e resistência que essa mágica inspirou, não dá para dizer que Arthur não concordaria.


A Dama do Lago oferecendo a Arthur a espada Excalibur.


 Mito e história lado a lado

Os elementos da lenda que até podem ter uma base factual e os que são pura invenção


PODE ATÉ SER:

Excalibur e o lago

Prestes a morrer, Arthur manda que joguem sua espada num lago. Esse era um costume comum entre os antigos soberanos celtas.

Tor, Glastonbury
Avalon

O melhor candidato para ser a ilha de Avalon é Glastonbury, que hoje fica em terra firme. Mas estudos mostram que no século V, com as cheias, o local ficava ilhado.

Espada na pedra

O mito de que o jovem Arthur retirou sua espada de uma pedra remonta à Idade do Bronze, quando elas eram forjadas em moldes de pedra.

Tristão

Na lenda, ele é um dos cavaleiros. Uma lápide do século VI, encontrada na Cornualha, tem o nome Drustanus, a forma céltica original de Tristão.


NÃO É DE JEITO NENHUM:

Castelo de Camelot

Os bretões do ano 500 usavam técnicas toscas de construção e até palácios e igrejas eram feitos de madeira. Camelot certamente não era um castelo.

Lancelot e Guinevere

O amor entre a esposa do rei e seu melhor amigo é uma invenção medieval, criada pelo poeta francês Chrétien de Troyes, no século XII.

Cavalaria

O Arthur histórico provavelmente lutou a cavalo, mas o conceito medieval das ordens de cavalaria só iria aparecer séculos mais tarde.

Merlin

Os romanos perseguiram ferozmente os druidas (sacerdotes celtas), e nenhum deve ter sobrado nos séculos V e VI, ainda mais com tanto poder sobre um rei.


Os outros "Arthurs" 



Teorias sobre a verdadeira face de Arthur nunca faltaram. Conheça algumas das principais interpretações sobre o personagem:

Guerreiro bretão

Para os defensores dessa tese, Arthur teria sido um bretão com poucas influências de Roma, e talvez nem pudesse ser considerado cristão. Seu principal campo de atuação teriam sido os reinos celtas do norte da Bretanha, no território da atual Escócia, e seus inimigos foram os invasores anglos do reino de Nortúmbria. Tudo indica, no entanto, que a cultura romana e principalmente o cristianismo já estavam bastante espalhados pela elite bretã da época, o que torna essa versão improvável

Último romano

Argumentando que Gildas não cita o nome de Arthur e que as referências ao personagem são todas muito tardias, alguns estudiosos preferem considerar Ambrosius Aurelianus como o melhor candidato a "Arthur histórico". Nesse caso, o grande líder da resistência bretã seria descendente direto de uma família nobre romana e teria tentado manter as conexões da ilha com o antigo Império, ao mesmo tempo em que teria combatido o surgimento de heresias cristãs na Bretanha

Cavaleiro bárbaro

Essa tese é baseada na presença de um oficial da cavalaria romana, Lucius Artorius Castus, na Bretanha do século II. Ele liderou um grupo de cavaleiros sármatas (bárbaros da Europa oriental) numa série de batalhas que parecem bater com as do Arthur lendário. Essa, aliás, é a versão escolhida pelo filme Rei Arthur – só que no filme a história se passa no século V mesmo, e Arthur é meio romano e meio bretão. Enfim, Hollywood adora uma mistureba. :D

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É muito difícil saber a verdade sobre Arthur. Mas o mais importante não é saber até onde vai a história e começa a lenda. O que realmente importa é o que Arthur representa. O herói genuíno que lutou por sua terra e por seu povo. Ser ou não ser rei não tem importância, pois as façanhas e aventuras de Arthur, tanto as verdadeiras quanto as fantasiosas, estarão para sempre cravadas nas nossas mentes, o símbolo que ele representa é o que será para sempre lembrado.


Fonte: Revista "Aventuras na História"

                                                                                                     Leandro Matos

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