A história de Deus foi escrita pelos homens. Mas quem é o autor do livro mais influente de todos os tempos?
A bíblia não foi enviada a nós por fax. A própria Igreja admite que a revelação divina só veio até nós por meio de mãos humanas. A palavra do Senhor é sagrada, mas foi escrita por reles mortais. Como não sobraram vestígios nem evidências concretas da maioria deles, a chave para encontrá-los está na própria Bíblia. Mas ela não é um simples livro: imagine as Escrituras como uma biblioteca inteira, que guarda textos montados pelo tempo, pela história e pela fé. Aliás, o termo “Bíblia”, que usamos no singular, vem do plural grego ta biblia ta hagia – “os livros sagrados”. A tradição religiosa sempre sustentou que cada livro bíblico foi escrito por um autor claramente identificável. Os 5 primeiros livros do Antigo Testamento (que no judaísmo se chamam Torá e no catolicismo Pentateuco) teriam sido escritos pelo profeta Moisés por volta de 1200 a.C. Os Salmos seriam obra do rei Davi, o autor de Juízes seria o profeta Samuel, e assim por diante. Hoje, a maioria dos estudiosos acredita que os livros sagrados foram um trabalho coletivo. E há uma boa explicação para isso.
Estátua de Gilgamesh, Universidade de Sidney, Austrália |
As raízes da árvore bíblica também remontam aos sumérios, antigos habitantes do atual Iraque, que no 3º milênio a.C. escreveram a Epopéia de Gilgamesh. Essa história, protagonizada pelo semideus Gilgamesh, menciona uma enchente que devasta o mundo, da qual algumas pessoas se salvam construindo um barco. Notou semelhanças com a Bíblia e seus textos sobre o dilúvio, a arca de Noé, o fato de Cristo ser humano e divino ao mesmo tempo? Não é mera coincidência. A Bíblia era uma obra aberta, com influência de muitas culturas.
Foi entre os séculos 10 e 9 a.C. que os escritores hebreus começaram a colocar essa sopa multicultural no papel. Isso aconteceu após o reinado de Davi, que teria unificado as tribos hebraicas num pequeno e frágil reino por volta do ano 1000 a.C. A primeira versão das Escrituras foi redigida nessa época e corresponde à maior parte do que hoje são o Gênesis e o Êxodo. Nesses livros, o tema principal é a relação passional, e às vezes conflituosa, entre Deus e os homens. Só que, logo no começo da Bíblia, já existiu uma divergência sobre o papel do homem e do Senhor na história toda. Isso porque o personagem principal, Deus, é tratado por dois nomes diferentes.
Em alguns trechos ele é chamado pelo nome próprio, Yahweh – traduzido em português como Javé ou Jeová. É um tratamento informal, como se o autor fosse íntimo de Deus. Em outros pontos, o Todo-Poderoso é chamado de Elohim, um título respeitoso e distante que pode ser traduzido simplesmente como “Deus”. Como se explica isso? Para os fundamentalistas, não tem conversa: Moisés escreveu tudo sozinho e usou os dois nomes simplesmente porque quis. Só que um trecho desse texto narra a morte do próprio Moisés. Como ele narraria a própria morte? Isso indica que ele não é o único autor. Os historiadores e a maioria dos religiosos aceitam outra teoria: esses textos tiveram pelo menos outros dois editores.
Acredita-se que os trechos que falam de Javé sejam os mais antigos, escritos numa época em que a religiosidade era menos formal. Eles contêm uma passagem reveladora: antes da criação do mundo, “Yahweh não derramara chuva sobre a terra, e nem havia homem para lavrar o solo”. Essa frase, “não havia homem para lavrar o solo”, indica que, na primeira versão da Bíblia, o homem não era apenas mais uma criação de Deus – ele desempenha um papel ativo e fundamental na história toda. Nesse relato, o homem é tido como co-criador do mundo.
Pelo nome que usa para se referir a Deus (Javé), o autor desses trechos foi apelidado de Javista. Já o outro autor, que teria vivido por volta de 850 a.C., é apelidado de Eloísta. Mais sisudo e religioso, ele compôs uma narrativa bastante diferente. Ao contrário do Deus-Javé, que fez o mundo num único dia, o Deus-Elohim levou 6 (e descansou no 7º). Nessa história, a criação é um ato exclusivo de Deus, e o homem surge apenas no 6º dia, junto aos animais.
Tempos mais tarde, os dois relatos foram misturados por editores anônimos – e a narrativa do Eloísta, mais comportada, foi parar no início das Escrituras. Começando por aquela frase incrivelmente simples e poderosa, notória até entre quem nunca leu a Bíblia: “E, no início, Deus criou o céu e a terra...”
Torá |
Em 589 a.C., Jerusalém foi arrasada pelos babilônios, e grande parte da população foi aprisionada e levada para Babilônia. Décadas depois, os hebreus foram libertados por Ciro, senhor do Império Persa – um conquistador “esclarecido”, que tinha tolerância religiosa. Aos poucos, os hebreus retornaram a Canaã – mas com sua fé transformada. Agora os sacerdotes judaicos rejeitavam o politeísmo e diziam que Javé era o único e absoluto deus do Universo. O monoteísmo pode ter surgido pelo contato com os persas – a religião deles, o masdeísmo, pregava a existência de um deus bondoso, Ahura Mazda, em constante combate contra um deus maligno, Arimã. Essa noção se reflete até na idéia cristã de um combate entre Deus e o Diabo.
Ilustração de Esdras |
Outras passagens, no entanto, descrevem um Senhor belicoso, vingativo e sanguinário, que ordena o extermínio de cidades inteiras não poupando nem mulheres nem crianças. Se a religião prega a compaixão, por que os textos sagrados têm tanto ódio? Para os especialistas, a violência do Antigo Testamento é fruto dos séculos de guerras com os assírios e os babilônios. Os autores do livro sagrado foram influenciados por essa atmosfera de ódio, e daí surgiram as histórias em que Deus se mostra bastante violento e até cruel. Os redatores da Bíblia estavam extravasando sua angústia.
Por volta do ano 200 a.C., o cânone (conjunto de livros sagrados) hebraico já estava finalizado e começou a se alastrar pelo Oriente Médio. A primeira tradução completa do Antigo Testamento é dessa época. Ela foi feita a mando do rei Ptolomeu 2º em Alexandria, no Egito, grande centro cultural da época. Segundo uma lenda, essa tradução (de hebraico para grego) foi realizada por 72 sábios judeus. Por isso, o texto é conhecido como Septuaginta. Além da tradução grega, também surgiram versões do Antigo Testamento no idioma aramaico, que era uma espécie de língua franca do Oriente Médio naquela época.
Dois séculos mais tarde, a Bíblia em aramaico estava bombando: ela era a mais lida na Judéia, na Samária e na Galiléia (províncias que formam os atuais territórios de Israel e da Palestina). Foi aí que um jovem judeu, grande personagem desta história, começou a se destacar. Como Sócrates, Buda e outros pensadores que mudaram o mundo, Jesus de Nazaré nada deixou por escrito. Os primeiros textos sobre ele foram produzidos décadas após sua morte.
Cristo Pantocrator, mosaico. Catedral de Cefalù |
A maioria dos evangelhos escritos nos séculos 1 e 2 desapareceram. Naquela época, um “livro” era um amontoado de papiros avulsos, enrolados em forma de pergaminho, podendo ser facilmente extraviados e perdidos. Mas alguns evangelhos foram copiados e recopiados à mão, por membros da Igreja. Até que, por volta do século 4, tomaram o formato de códice (um conjunto de folhas de couro encadernadas, ancestral do livro moderno). O problema é que, a essa altura do campeonato, gerações e gerações de copiadores já haviam introduzido alterações nos textos originais, seja por descuido, seja de propósito. Muitos erros foram feitos nas cópias, erros que às vezes mudaram o sentido dos textos. Em certos casos, tais erros foram também propositais, de acordo com a teologia do escrivão. Quer ver um exemplo?
Sabe aquela famosa cena em que Jesus salva uma adúltera prestes a ser apedrejada? De acordo com especialistas, esse trecho foi inserido no Evangelho de João por algum escriba, por volta do século 3. Isso porque, na época, o cristianismo estava cortando seu cordão umbilical com o judaísmo. E apedrejar adúlteras é uma das leis que os sacerdotes-escritores judeus haviam colocado no Pentateuco. A introdução da cena em que Jesus salva a adúltera passa a idéia de que os ensinamentos de Cristo haviam superado a Torá e, portanto, os cristãos já não precisavam respeitar ao pé da letra todos os ensinamentos judeus.
A julgar pelo último livro da Bíblia cristã, o Apocalipse, que descreve o fim do mundo, o receio de ter suas narrativas “editadas” era comum entre os autores do Novo Testamento. No versículo 18, lê-se uma terrível ameaça: “Se alguém fizer acréscimos às páginas deste livro, Deus o castigará com as pragas descritas aqui”. Essa ameaça reflete bem o clima dos primeiros séculos do cristianismo: uma verdadeira baderna teológica, com montes de seitas defendendo idéias diferentes sobre Deus e o Messias. A seita dos docetas, por exemplo, acreditava que Jesus não teve um corpo físico. Ele seria um espírito, e sua crucificação e morte não passariam de ilusão de ótica. Já os ebionistas acreditavam que Jesus não nascera Filho de Deus, mas fora adotado, já adulto, pelo Senhor. A primeira tentativa de organizar esse caos das Escrituras ocorreu por volta do ano 142, e o responsável não foi um clérigo, mas um rico comerciante de navios chamado Marcião.
A Bíblia segundo Marcião
Marcião |
Constantino, o Grande |
A escolha também era política. Um grupo afirmou seu poder e autoridade sobre os outros. Esse grupo era o dos cristãos apostólicos, que ganharam poder ao se aliar com o Império Romano. Os apostólicos eram, por assim dizer, o “partido do governo”. E por isso definiram o que iria entrar, ou ser eliminado, das Escrituras.
Eles escolheram os evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João para representar a biografia oficial de Cristo, enquanto as invenções dos docetas, dos ebionistas e de outras seitas foram excluídas, e seus autores declarados hereges. Os textos excluídos do cânone ganharam o nome de “apócrifos” – palavra que vem do grego apocrypha, “o que foi ocultado”. A maioria dos apócrifos se perdeu, afinal de contas, os escribas da Igreja não estavam interessados em recopiá-los para a posteridade. Mas, com o surgimento da arqueologia, no século 19, pedaços desses textos foram encontrados nas areias do Oriente Médio. É o caso de um polêmico texto encontrado em 1886 no Egito. Ele é assinado por uma certa “Maria”, que muitos acreditam ser a Madalena, discípula de Jesus, presente em vários trechos do Novo Testamento. O evangelho atribuído a ela é bem feminista: Madalena é descrita como uma figura tão importante quanto Pedro e os outros apóstolos. Nos primórdios do cristianismo, as mulheres eram aceitas no clero, e eram, inclusive, consideradas capazes de fazer profecias. Foi só no século 3 que o sacerdócio virou monopólio masculino, o que explicaria a censura da apóstola e seu testemunho. Aliás, Madalena não foi prostituta! Essa idéia surgiu por um erro na interpretação do livro sagrado. No ano 591, o papa Gregório fez um sermão dizendo que Madalena e outra mulher, também citada nas Escrituras e essa sim ex-pecadora, na verdade seriam a mesma pessoa. Em 1967, o Vaticano desfez o equívoco, limpando a reputação de Maria.
Maria Madalena por Pietro Perugino (c. 1500) |
Na evolução da Bíblia, foram aparecendo vários trechos machistas e suspeitos. É o caso de uma passagem atribuída ao apóstolo Paulo: “A mulher aprenda (...) com toda a sujeição. Não permito à mulher que ensine, nem que tenha domínio sobre o homem (...) porque Adão foi formado primeiro, e depois Eva”. É provável que Paulo jamais tenha escrito essas palavras porque, na época em que ele viveu o cristianismo não pregava a submissão da mulher. Acredita-se que essa parte tenha sido adicionada por algum escriba por volta do século 2.
Vulgata |
Daí saiu a Vulgata, a Bíblia latina, que até hoje é o texto oficial da Igreja Católica. Essa é a Bíblia que todo mundo conhece. A Vulgata foi o alicerce da Igreja no Ocidente. Ela é tão influente que até seus erros de tradução se tornaram clássicos. Ao traduzir uma passagem do Êxodo que descreve o semblante do profeta Moisés, são Jerônimo escreveu em latim: cornuta esse facies sua, ou seja, “sua face tinha chifres”. Esse detalhe esquisito foi levado a sério por artistas como Michelangelo – sua famosa escultura representando Moisés, hoje exposta no Vaticano, está ornada com dois belos corninhos. Tudo porque Jerônimo tropeçou na palavra hebraica karan, que pode significar tanto “chifre” quanto “raio de luz”. A tradução correta está na Septuaginta: o profeta tinha o rosto iluminado, e não chifrudo. Apesar de erros como esse, a Vulgata reinou absoluta ao longo da Idade Média e durante séculos não houve outras traduções.
Moisés de Michelangelo |
O único jeito de disseminar o livro sagrado era copiá-lo à mão, tarefa realizada pelos monges copistas. Eles raramente saíam dos mosteiros e passavam a vida copiando e catalogando manuscritos antigos. Só que, às vezes, também se metiam a fazer o papel de autores.
Após a queda do Império Romano, grande parte da literatura da Antiguidade grega e romana se perdeu. Foi graças ao trabalho dos monges copistas que livros como a Ilíada e a Odisséia chegaram até nós. Mas alguns deles eram meio malandros: costumavam interpolar textos nas Escrituras Sagradas para agradar a reis e imperadores. No século 15, por exemplo, monges espanhóis trocaram o termo “babilônios” por “infiéis” no texto do Antigo Testamento – um truque para atacar os muçulmanos, que disputavam com os espanhóis a posse da península Ibérica.
Escrituras em série
Tudo isso mudou após a invenção da imprensa, em 1455. Agora ninguém mais dependia dos copistas para multiplicar os exemplares da Bíblia. Por isso, o grande foco de mudanças no texto sagrado passou a ser outro: as traduções. Em 1522, o pastor Martinho Lutero usou a imprensa para divulgar em massa sua tradução da Bíblia, que tinha feito direto do hebraico e do grego para o alemão. Era a primeira vez que o texto sagrado era vertido numa língua moderna. Logo depois um britânico, William Tyndale, traduziu a Bíblia para o inglês. No Novo Testamento, ele traduziu a palavra ecclesia por “congregação”, em vez de “igreja”, o termo preferido pelas traduções católicas. A mudança nessa palavrinha era um desafio ao poder dos papas: como era protestante, Tyndale tinha suas diferenças com a Igreja. Resultado? Ele foi queimado como herege em 1536. Mas até hoje seu trabalho é referência para as versões inglesas do livro sagrado.
Ilustração dos últimos momentos de Tyndale |
A Bíblia chegou ao nosso idioma em 1753 quando foi publicada sua primeira tradução completa para o português, feita pelo protestante João Ferreira de Almeida. Hoje, a tradução considerada oficial é a feita pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e lançada em 2001. Ela é considerada mais simples e coloquial que as traduções anteriores. De lá para cá, a Bíblia ganhou o mundo e as línguas. Já foi vertida para mais de 300 idiomas e continua um dos livros mais influentes do mundo. Todos os anos são publicadas 11 milhões de cópias do texto integral, e 14 milhões só do Novo Testamento.
Depois de tantos séculos de versões e contra-versões, ainda não há consenso sobre a forma certa de traduzi-la. Alguns buscam traduções mais próximas do sentido e da época original, como as passagens traduzidas do hebraico pelo lingüista David Rosenberg na obra O Livro de J, de 1990. Outros acham que a Bíblia deve ser modernizada para atrair leitores. O lingüista Eugene Nida, que verteu a Bíblia na década de 1960, chegou ao extremo de traduzir a palavra “sestércios”, a antiga moeda romana, por “dólares”. Em 2008, duas versões igualmente ousadas agitaram as Escrituras: a Green Bible (“Bíblia Verde”, ainda sem versão em português), que destaca 1 000 passagens relacionadas à ecologia – como o momento em que Jó fala sobre os animais –, e a Bible Illuminated (‘Bíblia Iluminada”, em inglês), com design ultramoderno e fotos de celebridades como Nelson Mandela e Angelina Jolie.
Charles Darwin |
Fonte: Revistas Aventuras na História, Super Interessante e Galileu
Leandro Matos
fodaaaaaaaaaaaaa!
ResponderExcluirnao achei nada de interesante
ResponderExcluiridiotisse
ResponderExcluirPara o conhecimento existe a luz e as trevas quem busca a luz a luz o conhece mas quem busca as trevas a escuridão os conhece.
ResponderExcluirGostei do texto. ler a bíblia como um livro de história é uma coisa, ler a bíblia como fanático religiosa é outra conversa.Eu tô fora.
ResponderExcluirA Bíblia não passa de um livro escrito por um bando de homens ignorantes (ao extremo), machistas, misóginos,racistas e frustrados sexualmente, e que gostariam que a vida sexual da humanidade inteira fosse um porre, como a deles.
ResponderExcluirUm monte de historinhas primitivas e infantis. Nada mais...